27.10.05
Sociedade anônima,
| ::: |uma previsão midiática paranóica| ::: |
|...|pseudo-ficcional|...|
ander_laine
Era o primeiro dia de Michel no novo emprego. A expectativa não era pelo novo, mas pelo emprego. Finalmente atingira o objetivo de sua carreira. Emocionava-se ao pensar que a possibilidade desse emprego –que agora era seu!- foi o fator decisivo para se dedicar ao jornalismo.
Seria diretor de redação da revista Olhe!, simplesmente a referência em informação. Não podia ser verdade. Um cargo de tanta responsabilidade.
A revista Olhe! é o principal veículo de comunicação do país, responsável principal pela delineação da opinião pública, da definição de tendências, da ratificação de hipóteses. Se resume a defensora do interesse público. Leva isso às últimas conseqüências: nenhum cargo da revista Olhe! é divulgado. Nenhum profissional da revista Olhe! é identificado. As matérias não são assinadas. Mas a hierarquia e o status da redação permanecem como nas sociedades capitalistas primitivas.
Sua linha editorial cobre os mais diversos assuntos, dos mais pertinentes aos explicitamente gratuitos. Versa com a mesma naturalidade sobre comportamento de ambos os sexos, de todas as idades, política, economia, artes, moda, crime, punição e julgamento, jurisdição&legislação, medicina, guerra+paz etc. Traduz, fundamentalmente, a opinião pública. E apenas a opinião pública. O olho da sociedade.
Seu slogan, “A consciência de todos”, é emblemático de toda uma geração que cresceram numa monarquia autoritária e soberana, daquelas ditas exemplares. Mas não por seus valores ou méritos, mas por suas punições exemplares. A geração de Michel não derrubou o soberano simplesmente, la foi a responsável pela criação da democracia igualitária e justa que se tem hoje. Que só é perpetuada por instituições sólidas e confiáveis como a revista Olhe!, o Centro Decisor e o Exército.
A revista Olhe! já foi diversas vezes acusada de ser porta-voz do Centro Decisor, o que é completamente falso. São órgãos completamente desvinculados e isentos. A revista Olhe! em diversas oportunidades divergiu das resoluções do Centro e sempre expôs claramente sua opinião.
Ela foi criada juntamente com o Novo Governo e o Centro Decisor para, além de bem informar toda a sociedade, ser como que um marco normalizador da nova democracia instaurada. Mas, ao contrário dos outros dois órgãos, em que os representantes são indiciados por processo meritocrata, a revista Olhe! é uma empresa pública gerenciada por capital privado. Não tem fins lucrativos. Por razões de Estado, no entanto, todos seus funcionários são registrados com outras funções. Nem sempre como jornalistas. Às vezes são registrados e credenciados em alguma função que facilite seu acesso a locais e a pessoas que sejam convenientes para seu cargo na revista Olhe!.
O processo de contratação também é interessante. Profissionais respeitados e reconhecidamente aptos são escolhidos sigilosamente por uma comissão nomeada pelos acionistas do pool de empresas que gerencia a revista Olhe!. A comissão sempre é difere e formada à medida em que se fizer necessária. Os jornalistas indicados por essa comissão são triados, avaliados e eleitos por votação pelo Centro Decisor. O sigilo sempre é obrigatório e no caso do profissional perder o direito de trabalhar na revista Olhe!, o sigilo será obrigatório. Passível da punição mais grave possível: o descrédito. Nesse caso, ainda, o descrédito pessoal e profissional. É, na gíria atual, a ‘morte viva’.
A geração de Michel ainda preservava os traços combativos de quando derrubou o soberano. Não permitia que o Novo Governo interferisse na verdade dos fatos e nas relações de poder entre ele e o povo. E muito dessa força, acreditava Michel, era decorrência direta da atuação da revista Olhe!, sempre atenta, observando tudo, com olhos infinitos, sempre pronta a denunciar.
Michel era especialmente revolucionário. Na época da Grande Revolução ele já era jornalista e foi um dos líderes do movimento que fomentou a revolta popular contra o soberano. Ajudou a formalizar a estrutura do Novo Governo, foi quem mais contribuiu para a funcionalidade do Centro Decisor. E, principalmente, quem mais lutou pela autonomia da revista Olhe!.
Ele tinha a certeza de que era esse seu espírito decidido e impetuoso, sempre pronto a discordar que lhe custara tanto tempo de espera. Teve de esperar por dez anos para ter o cargo que agora ocupava. Tinha certeza de que os eleitores do Centro o vetaram com medo de que ele pudesse pôr tudo a perder, enquanto o sistema ainda não estava consolidado.
O primeiro mês na revista Olhe! foi a coisa mais inacreditável da vida de Michel. Ele nunca teve a seu alcance tanta informação. Apesar da vasta cobertura da revista Olhe!, muita coisa era deixada de fora da edição final do dia.
E Michel estava adorando a responsabilidade. Seu cargo era de dar o rumo da revista Olhe!, em palavras banais. Era ele quem tinha o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. E, no fundo, sabia que ele era o homem certo para o cargo.
A situação político-econômica do país nunca tinha sido tão boa. O crescimento da economia e do valor de movimentação financeira especulativa batia recordes mundiais históricos. Níveis jamais vistos de geração de renda.
O Novo Governo era transparente como a ideologia revolucionária que estava por trás de sua ascensão. A política era a esfera pública mais compartilhada pelas pessoas.
A alegria de Michel durou poucos meses.
Michel trabalhava todos os dias da semana, de dez a 14 horas por dia. Decidia sobre tudo e todos. Tinha toda a informação que existia. Foi quando percebeu a lógica daquele jogo. O anonimato da revista Olhe! garante que ninguém jamais saberá se e quando está sendo investigado por algum repórter. Ou seja, virtualmente todos podem ser. Isso fazia com que a sociedade estivesse sempre sob vigilância. Isso permitiria a quem quer que dispusesse dessa informação individualizar o foco e, ao mesmo tempo, olhando com distanciamento social, prever comportamentos maciços desses indivíduos.
Michel teve, nesse momento, a certeza de que os membros do Centro Decisor tinham, evidentemente, acesso à mesma informação que ele. E, pior que eles, os acionistas do pool também. Achou improvável que, num sistema tão transparente, houvesse qualquer promiscuidade nas relações de poder. E muito menos na relação entre poder e a verdade que ele produzia.
Ele passou alguns meses sondando os figurões das empresas. Sobre o que falavam, que tipo de informação tinham e que uso faziam dela. Fez amizade com alguns, descobriu truques da profissão, ganhou intimidade. Acabou por descobrir de que maneira essa informação era usada. Apenas como instrumento de manipulação do interesse comercial e consumista do povo. As verdades que ele fabricava eram responsáveis pelo aprisionamento da sociedade que ajudou a construir.
Quando descobriu isso, tentou publicar, de próprio punho, uma matéria a respeito. O Centro Decisor o vetou e o advertiu. Ele ignorou, continuou sua investigação e descobriu que tudo que ele avaliava vinha do Centro Decisor e do Novo Governo, em versões já aprovadas por ambos.
Michel demorou um certo tempo para atinar com a idéia de que a informação com que ele lidava era um bem quantitativo, já previamente contabilizado por aqueles que, efetivamente, ao contrário dele, exercem o poder.
Ele nada mais era que um títere nas mãos cruéis de soberanos perversos. O mal havia retornado. Michel sentia que algo devia ser feito, mas não sabia como voltar ao lado do bem.
Não sabia como lidar com o fato de que tudo aquilo que produziu era, na verdade, um produto da relação dele com o soberano, digo, o Centro Decisor e o Novo Governo. Percebia agora o quanto o poder estava além dele, Michel. Descobriu que ele também estava disciplinado.
Foi quando se questionou sobre as verdade. O que eram e o que representavam. E percebeu que elas só faziam sentido por dizerem respeito ao poder. E era apenas o poder que lhes fazia verdade. Só agora percebia o quanto tinha sido ingênuo por acreditar que ele era o crivo. Não, ele era uma pequena engrenagem na grande máquina do poder. E sofria os efeitos. Mas não sabia o que fazer para mudar.
A Grande Revolução se provou, pela primeira vez –e de maneira absolutamente particular e individual- um fracasso. Mesmo com a mudança do regime a produção da verdade, a adesão a ela ainda permaneciam no mesmo estágio dos tempos do soberano. Michel soube que uma outra revolução seria, da mesma forma, vã. Precisava mudar seus meios de lutar, mas sem usar métodos comprovadamente ineficazes.
Precisava abdicar das verdades, dos julgamentos que tanto se fazem na sociedade. Precisava fazer com que o sistema de poder e suas relações mudasse, e via na produção das verdades uma possibilidade.
Percebeu que eram essas verdades que padronizavam a vida, e favoreciam, dessa maneira os detentores do poder.
Michel vislumbrou uma possibilidade. Achar maneiras de denunciar as brechas do sistema, manter-se dentro dele, mas alheio a ele. Infelizmente, Michel foi misteriosamente assassinado na saída de sua casa.
Seu corpo teve os olhos retirados. A revista Olhe! não noticiou o fato. Foi enterrado como indigente no cemitério de um manicômio.
Seria diretor de redação da revista Olhe!, simplesmente a referência em informação. Não podia ser verdade. Um cargo de tanta responsabilidade.
A revista Olhe! é o principal veículo de comunicação do país, responsável principal pela delineação da opinião pública, da definição de tendências, da ratificação de hipóteses. Se resume a defensora do interesse público. Leva isso às últimas conseqüências: nenhum cargo da revista Olhe! é divulgado. Nenhum profissional da revista Olhe! é identificado. As matérias não são assinadas. Mas a hierarquia e o status da redação permanecem como nas sociedades capitalistas primitivas.
Sua linha editorial cobre os mais diversos assuntos, dos mais pertinentes aos explicitamente gratuitos. Versa com a mesma naturalidade sobre comportamento de ambos os sexos, de todas as idades, política, economia, artes, moda, crime, punição e julgamento, jurisdição&legislação, medicina, guerra+paz etc. Traduz, fundamentalmente, a opinião pública. E apenas a opinião pública. O olho da sociedade.
Seu slogan, “A consciência de todos”, é emblemático de toda uma geração que cresceram numa monarquia autoritária e soberana, daquelas ditas exemplares. Mas não por seus valores ou méritos, mas por suas punições exemplares. A geração de Michel não derrubou o soberano simplesmente, la foi a responsável pela criação da democracia igualitária e justa que se tem hoje. Que só é perpetuada por instituições sólidas e confiáveis como a revista Olhe!, o Centro Decisor e o Exército.
A revista Olhe! já foi diversas vezes acusada de ser porta-voz do Centro Decisor, o que é completamente falso. São órgãos completamente desvinculados e isentos. A revista Olhe! em diversas oportunidades divergiu das resoluções do Centro e sempre expôs claramente sua opinião.
Ela foi criada juntamente com o Novo Governo e o Centro Decisor para, além de bem informar toda a sociedade, ser como que um marco normalizador da nova democracia instaurada. Mas, ao contrário dos outros dois órgãos, em que os representantes são indiciados por processo meritocrata, a revista Olhe! é uma empresa pública gerenciada por capital privado. Não tem fins lucrativos. Por razões de Estado, no entanto, todos seus funcionários são registrados com outras funções. Nem sempre como jornalistas. Às vezes são registrados e credenciados em alguma função que facilite seu acesso a locais e a pessoas que sejam convenientes para seu cargo na revista Olhe!.
O processo de contratação também é interessante. Profissionais respeitados e reconhecidamente aptos são escolhidos sigilosamente por uma comissão nomeada pelos acionistas do pool de empresas que gerencia a revista Olhe!. A comissão sempre é difere e formada à medida em que se fizer necessária. Os jornalistas indicados por essa comissão são triados, avaliados e eleitos por votação pelo Centro Decisor. O sigilo sempre é obrigatório e no caso do profissional perder o direito de trabalhar na revista Olhe!, o sigilo será obrigatório. Passível da punição mais grave possível: o descrédito. Nesse caso, ainda, o descrédito pessoal e profissional. É, na gíria atual, a ‘morte viva’.
A geração de Michel ainda preservava os traços combativos de quando derrubou o soberano. Não permitia que o Novo Governo interferisse na verdade dos fatos e nas relações de poder entre ele e o povo. E muito dessa força, acreditava Michel, era decorrência direta da atuação da revista Olhe!, sempre atenta, observando tudo, com olhos infinitos, sempre pronta a denunciar.
Michel era especialmente revolucionário. Na época da Grande Revolução ele já era jornalista e foi um dos líderes do movimento que fomentou a revolta popular contra o soberano. Ajudou a formalizar a estrutura do Novo Governo, foi quem mais contribuiu para a funcionalidade do Centro Decisor. E, principalmente, quem mais lutou pela autonomia da revista Olhe!.
Ele tinha a certeza de que era esse seu espírito decidido e impetuoso, sempre pronto a discordar que lhe custara tanto tempo de espera. Teve de esperar por dez anos para ter o cargo que agora ocupava. Tinha certeza de que os eleitores do Centro o vetaram com medo de que ele pudesse pôr tudo a perder, enquanto o sistema ainda não estava consolidado.
O primeiro mês na revista Olhe! foi a coisa mais inacreditável da vida de Michel. Ele nunca teve a seu alcance tanta informação. Apesar da vasta cobertura da revista Olhe!, muita coisa era deixada de fora da edição final do dia.
E Michel estava adorando a responsabilidade. Seu cargo era de dar o rumo da revista Olhe!, em palavras banais. Era ele quem tinha o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. E, no fundo, sabia que ele era o homem certo para o cargo.
A situação político-econômica do país nunca tinha sido tão boa. O crescimento da economia e do valor de movimentação financeira especulativa batia recordes mundiais históricos. Níveis jamais vistos de geração de renda.
O Novo Governo era transparente como a ideologia revolucionária que estava por trás de sua ascensão. A política era a esfera pública mais compartilhada pelas pessoas.
A alegria de Michel durou poucos meses.
Michel trabalhava todos os dias da semana, de dez a 14 horas por dia. Decidia sobre tudo e todos. Tinha toda a informação que existia. Foi quando percebeu a lógica daquele jogo. O anonimato da revista Olhe! garante que ninguém jamais saberá se e quando está sendo investigado por algum repórter. Ou seja, virtualmente todos podem ser. Isso fazia com que a sociedade estivesse sempre sob vigilância. Isso permitiria a quem quer que dispusesse dessa informação individualizar o foco e, ao mesmo tempo, olhando com distanciamento social, prever comportamentos maciços desses indivíduos.
Michel teve, nesse momento, a certeza de que os membros do Centro Decisor tinham, evidentemente, acesso à mesma informação que ele. E, pior que eles, os acionistas do pool também. Achou improvável que, num sistema tão transparente, houvesse qualquer promiscuidade nas relações de poder. E muito menos na relação entre poder e a verdade que ele produzia.
Ele passou alguns meses sondando os figurões das empresas. Sobre o que falavam, que tipo de informação tinham e que uso faziam dela. Fez amizade com alguns, descobriu truques da profissão, ganhou intimidade. Acabou por descobrir de que maneira essa informação era usada. Apenas como instrumento de manipulação do interesse comercial e consumista do povo. As verdades que ele fabricava eram responsáveis pelo aprisionamento da sociedade que ajudou a construir.
Quando descobriu isso, tentou publicar, de próprio punho, uma matéria a respeito. O Centro Decisor o vetou e o advertiu. Ele ignorou, continuou sua investigação e descobriu que tudo que ele avaliava vinha do Centro Decisor e do Novo Governo, em versões já aprovadas por ambos.
Michel demorou um certo tempo para atinar com a idéia de que a informação com que ele lidava era um bem quantitativo, já previamente contabilizado por aqueles que, efetivamente, ao contrário dele, exercem o poder.
Ele nada mais era que um títere nas mãos cruéis de soberanos perversos. O mal havia retornado. Michel sentia que algo devia ser feito, mas não sabia como voltar ao lado do bem.
Não sabia como lidar com o fato de que tudo aquilo que produziu era, na verdade, um produto da relação dele com o soberano, digo, o Centro Decisor e o Novo Governo. Percebia agora o quanto o poder estava além dele, Michel. Descobriu que ele também estava disciplinado.
Foi quando se questionou sobre as verdade. O que eram e o que representavam. E percebeu que elas só faziam sentido por dizerem respeito ao poder. E era apenas o poder que lhes fazia verdade. Só agora percebia o quanto tinha sido ingênuo por acreditar que ele era o crivo. Não, ele era uma pequena engrenagem na grande máquina do poder. E sofria os efeitos. Mas não sabia o que fazer para mudar.
A Grande Revolução se provou, pela primeira vez –e de maneira absolutamente particular e individual- um fracasso. Mesmo com a mudança do regime a produção da verdade, a adesão a ela ainda permaneciam no mesmo estágio dos tempos do soberano. Michel soube que uma outra revolução seria, da mesma forma, vã. Precisava mudar seus meios de lutar, mas sem usar métodos comprovadamente ineficazes.
Precisava abdicar das verdades, dos julgamentos que tanto se fazem na sociedade. Precisava fazer com que o sistema de poder e suas relações mudasse, e via na produção das verdades uma possibilidade.
Percebeu que eram essas verdades que padronizavam a vida, e favoreciam, dessa maneira os detentores do poder.
Michel vislumbrou uma possibilidade. Achar maneiras de denunciar as brechas do sistema, manter-se dentro dele, mas alheio a ele. Infelizmente, Michel foi misteriosamente assassinado na saída de sua casa.
Seu corpo teve os olhos retirados. A revista Olhe! não noticiou o fato. Foi enterrado como indigente no cemitério de um manicômio.
ander_laine é paranóico