23.6.05
o triunfo do falso pretendente
O maior fato jornalístico da História -infelizmente, sem nenhum juízo de valor- foi o passamento do velho Karol Wojtila dessa para uma melhor. Espera-se que melhor para ele, já que aqui, no reino dos crentes e pagãos viventes, continuamos na mesma; talvez até pior, posto que seu sucessor não é das figurinhas mais célebres da santa sé romana (todas as caixas baixas, daqui por diante, serão ideologicamente intencionais).
Enfim, a morte de João Paulo II foi o fato mais noticiado, comentado, televisionado e “esgotado” de todos os tempos. Bem, sempre se pode alegar que os meios de comunicação tiveram pelo menos alguns anos para preparar obituários, biografias e notas sobre a despedida final do velhote polonês. Claro, nada que justifique o inesgotável apetite televisivo por imagens -iguais, repetidas e, pasme!, estáticas- da vigília. Algumas redes chegaram a exibir o velório de JP, que durou dias, na íntegra. Ou quase, o que, de qualquer forma, já é muito, muito mais que suficiente. Talvez tenha sido a cobertura inexorável e sensacionalista da mídia a responsável pela “comoção” mundial pelo falecimento do sumo pontífice do catolicismo. Talvez não, mas não é essa a discussão que está posta neste texto especificamente.
O sucessor de JP, conforme dita a norma católica, deveria ser eleito por meio de um conclave de cardeais, o posto mais alto da instituição, logo abaixo do próprio papa, o “vigário de cristo na terra”. Aliás, vamos partir dessa alcunha para iniciarmos o raciocínio primeiro: essa denominação do papa lhe confere não exatamente uma dicotomia em si, mas uma dualidade corpórea. O papa tem dois corpos: o físico e o político (poderia ter dito religioso, mas deixemos a ingenuidade para os que crêem).
A idéia de dois corpos não é nova, data da Alta Idade Média. Porém, no caso do sucessor de JP, o famigerado Joseph Ratzinger, agora Bento XVI, a divisão corpórea não se dá apenas nos limites físicos e políticos, mas, muito mais perigosamente, no aspecto que o próprio papa já não é mais tão genuíno assim, ele é vítima e algoz de sua imagem. Na verdade, a dualidade última a que ele está sujeito é essa: seu corpo e sua imagem. E o que cada um deles representa.
A imagem política e pessoal de Bento traz à tona contradições não do papa em si, mas do homem por trás do título. Quem é Joseph Ratzinger? De que maneira a pessoa que ele é pode influenciar em suas decisões político-religiosas? Ora, o ex-participante da juventude hitlerista, que foi prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, órgão sucessor da Inquisição, e um conhecido crítico de métodos contraceptivos, de sexualidades alternativas e de participação feminina em diversos setores da sociedade está no topo da mais importante religião ocidental. Suas atitudes pessoais indicam para onde ele pretende -e pode- levar o catolicismo.
Porém, Bento nada mais é que um simulacro, na definição platônica. Sua imagem é apenas uma falsa imitação do poder divino. Seu corpo político é uma cópia deturpada e corrompida do modelo. No entanto, esse simulacro, ainda platonicamente, carrega em si uma carga de identificação muito forte por parte dos fiéis. Como diz Gilles Deleuze, “o simulacro implica grandes dimensões, profundidades e distâncias que o observador não pode dominar. É porque não as domina que ele experimenta uma impressão de semelhança” (in, Lógica do sentido, p.264). Os fiéis não dominam a dimensão exata do papa, seus traquejos políticos. No máximo, conhecem suas inclinações ideológicas e a elas se alinham ou não.
O simulacro que Bento representa não é aquele que quer Deleuze, “um devir subversivo das profundidades” (idem, ibidem). Sua imagem não tem contexto, posto que ela se vale por si, é ela, em última instância, que importa. É o que afirma Pierre Zucca: “antes de ser a reprodução de uma realidade exterior a si mesma, a imagem é um ângulo, (...) um olhar” (in, A dupla natureza da imagem, p.02). É a imagem de Bento que representa, ela mesma, Bento.
Esta particularidade da imagem de apresentar um tema muitas vezes único a olhares múltiplos obriga o fabricante de imagens a modificar o assunto a ser representado, de modo a lhe atribuir uma força e um sentido capazes de se impor sem ambigüidade à consciência daqueles que a contemplam. (id., ibid.)
Toda coerência é inventada, falsificada. No jogo de reflexos em que estamos inseridos, é a ordem estabelecida que falseia a incoerência do modelo. Ratzinger, ou Bento, como queira, representa esse falseamento. Ele se distingue, na dialética platônica, dos falsos pretendentes. Deleuze explica: “a dialética platônica não é uma dialética da contradição nem da contrariedade, mas uma dialética da rivalidade (amphisbetesis), uma dialética dos rivais ou dos pretendentes. A essência da divisão não aprece em largura, na determinação das espécies de um gênero, mas em profundidade, na seleção da linhagem. Filtrar as pretensões, distinguir o verdadeiro pretendente do falso” (in, Lógica do sentido, p.260).
Mas não seria Bento o falso pretendente? Se, de fato, ele é o simulacro, a falsa cópia do deus na terra, como saberemos, pela lógica platônica, quem é o bom ou o mau pretendente? “A distinção se desloca entre duas espécies de imagens. As cópias, (...) pretendentes bem fundados, garantidos pela semelhança; os simulacros são como os falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, um desvio essenciais” (id., p.262). A (falsa) semelhança de Bento “não deve ser entendida como uma relação exterior; ela vai menos de uma coisa a outra do que de uma coisa a uma Idéia, uma vez que é a Idéia que compreende as relações e proporções constitutivas da essência interna” (id., ibid.).
Interrompendo as verborrágicas citações e passando às referências, deus fez o homem à sua imagem -a cópia- e foi o pecado que nos afastou dela. Trocando em miúdos, foi o pecado que nos fez simulacros. Embora conservássemos a imagem, havíamos perdido a semelhança. É o que ocorre com Bento. Mantém a imagem do vigário de cristo, mas não possui mais a semelhança com o filho do homem. Todo simulacro é construído sobre a diferença. E é nessa diferença que está Bento. Bento, o simulacro-fantasma.
Bento, o fantasma.
A dissociação do corpo político e físico de Bento é o resultado desse jogo de representações. De um lado, é cristo. De outro, é homem. Apesar de que nem mesmo cristo escapou completamente ileso dessa dicotomia. Ernst Kantorowicz joga (platonicamente?) uma luz no assunto: “após o advento de cristo na carne, e após sua ascensão e exaltação como Rei da Glória, a realeza terrestre passaria constantemente por uma transformação e a receber sua função própria na economia da salvação. Os reis da Nova Aliança não seriam mais os “prefiguradores” de cristo, mas antes “figuras”, imitadores de cristo. (...) Cristo era Rei e Christus por sua própria natureza, ao passo que seu representante na terra era rei e christus somente pela graça” (in, Os dois corpos do rei, p. 51).
Claro que sempre há argumentos contra aquilo que se diz. No meu caso não é diferente. Está na bíblia: “daí a césar o que é de césar”, quando cristo dá ao imperador Tibério o dinheiro do tributo. É, mais uma vez, Kantorowicz que tem a palavra: “Tibério enquanto homem é iníquo; mas é divino como César, é divino como encarnação do Poder, é deus e, ao mesmo tempo, em relação a jesus, dominus. E a personalidade dual de Tibério torna-se tanto mais envolvida -e quase irremediavelmente-, quanto essa gemina persona, jesus cristo, o unigenitus, segundo sua deidade, e o primogenitus, segundo sua humanidade” (id, p.55).
O que se quer dizer, grosso modo, é que, já que está lá, tudo bem, ele é deus na terra mesmo e nada se pode fazer. Afinal, Ratzinger foi eleito por um conclave idôneo de cardeais. Porém, volto a Kantoriwicz, no parágrafo imediatamente seguinte à citação anterior: “desse confronto de suas personalidades duais, portanto, resulta o mais estranho quiasma imaginável. É como se a potestas de Tibério qua César fosse “aureolada”, ao passo que cristo, em sua servidão humana permanecesse sem auréola. Ao mesmo tempo, contudo, o iníquo Tibério, em seu corpo natural individual, não tem auréola, ao passo que deus encarnado e individuado, ainda que um deus absconditus, é aureolado até como homem” (id, ibid.).
Ratzinger, como divindade terrena está acima do bem e do mal, mas como homem que é, está sujeito à aprovação ou desaprovação e deve (deveria) responder por seus atos.
No entanto, aguardamos ainda o simulacro profetizado por Deleuze, aquele que irá subverter tanto o modelo quanto a cópia, aquele “sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual”. Talvez, quando sairmos da “dupla exigência do Mesmo e do Semelhante” possamos ver o que há por trás de eleições de presidentes, papas e afins. Talvez, aí sim, na subversão definitiva das profundidades, na completa corrupção do modelo possamos ver o que há por trás da imagem, o que há além dos dois corpos do rei. Até lá, resta-nos duvidar desses simulacros-fantasmas que habitam nosso imaginário. Até lá, resta-nos combater a infame imagem de Ratzinger e outros fantasmas que têm mais poder que veracidade.
Enfim, a morte de João Paulo II foi o fato mais noticiado, comentado, televisionado e “esgotado” de todos os tempos. Bem, sempre se pode alegar que os meios de comunicação tiveram pelo menos alguns anos para preparar obituários, biografias e notas sobre a despedida final do velhote polonês. Claro, nada que justifique o inesgotável apetite televisivo por imagens -iguais, repetidas e, pasme!, estáticas- da vigília. Algumas redes chegaram a exibir o velório de JP, que durou dias, na íntegra. Ou quase, o que, de qualquer forma, já é muito, muito mais que suficiente. Talvez tenha sido a cobertura inexorável e sensacionalista da mídia a responsável pela “comoção” mundial pelo falecimento do sumo pontífice do catolicismo. Talvez não, mas não é essa a discussão que está posta neste texto especificamente.
O sucessor de JP, conforme dita a norma católica, deveria ser eleito por meio de um conclave de cardeais, o posto mais alto da instituição, logo abaixo do próprio papa, o “vigário de cristo na terra”. Aliás, vamos partir dessa alcunha para iniciarmos o raciocínio primeiro: essa denominação do papa lhe confere não exatamente uma dicotomia em si, mas uma dualidade corpórea. O papa tem dois corpos: o físico e o político (poderia ter dito religioso, mas deixemos a ingenuidade para os que crêem).
A idéia de dois corpos não é nova, data da Alta Idade Média. Porém, no caso do sucessor de JP, o famigerado Joseph Ratzinger, agora Bento XVI, a divisão corpórea não se dá apenas nos limites físicos e políticos, mas, muito mais perigosamente, no aspecto que o próprio papa já não é mais tão genuíno assim, ele é vítima e algoz de sua imagem. Na verdade, a dualidade última a que ele está sujeito é essa: seu corpo e sua imagem. E o que cada um deles representa.
A imagem política e pessoal de Bento traz à tona contradições não do papa em si, mas do homem por trás do título. Quem é Joseph Ratzinger? De que maneira a pessoa que ele é pode influenciar em suas decisões político-religiosas? Ora, o ex-participante da juventude hitlerista, que foi prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, órgão sucessor da Inquisição, e um conhecido crítico de métodos contraceptivos, de sexualidades alternativas e de participação feminina em diversos setores da sociedade está no topo da mais importante religião ocidental. Suas atitudes pessoais indicam para onde ele pretende -e pode- levar o catolicismo.
Porém, Bento nada mais é que um simulacro, na definição platônica. Sua imagem é apenas uma falsa imitação do poder divino. Seu corpo político é uma cópia deturpada e corrompida do modelo. No entanto, esse simulacro, ainda platonicamente, carrega em si uma carga de identificação muito forte por parte dos fiéis. Como diz Gilles Deleuze, “o simulacro implica grandes dimensões, profundidades e distâncias que o observador não pode dominar. É porque não as domina que ele experimenta uma impressão de semelhança” (in, Lógica do sentido, p.264). Os fiéis não dominam a dimensão exata do papa, seus traquejos políticos. No máximo, conhecem suas inclinações ideológicas e a elas se alinham ou não.
O simulacro que Bento representa não é aquele que quer Deleuze, “um devir subversivo das profundidades” (idem, ibidem). Sua imagem não tem contexto, posto que ela se vale por si, é ela, em última instância, que importa. É o que afirma Pierre Zucca: “antes de ser a reprodução de uma realidade exterior a si mesma, a imagem é um ângulo, (...) um olhar” (in, A dupla natureza da imagem, p.02). É a imagem de Bento que representa, ela mesma, Bento.
Esta particularidade da imagem de apresentar um tema muitas vezes único a olhares múltiplos obriga o fabricante de imagens a modificar o assunto a ser representado, de modo a lhe atribuir uma força e um sentido capazes de se impor sem ambigüidade à consciência daqueles que a contemplam. (id., ibid.)
Toda coerência é inventada, falsificada. No jogo de reflexos em que estamos inseridos, é a ordem estabelecida que falseia a incoerência do modelo. Ratzinger, ou Bento, como queira, representa esse falseamento. Ele se distingue, na dialética platônica, dos falsos pretendentes. Deleuze explica: “a dialética platônica não é uma dialética da contradição nem da contrariedade, mas uma dialética da rivalidade (amphisbetesis), uma dialética dos rivais ou dos pretendentes. A essência da divisão não aprece em largura, na determinação das espécies de um gênero, mas em profundidade, na seleção da linhagem. Filtrar as pretensões, distinguir o verdadeiro pretendente do falso” (in, Lógica do sentido, p.260).
Mas não seria Bento o falso pretendente? Se, de fato, ele é o simulacro, a falsa cópia do deus na terra, como saberemos, pela lógica platônica, quem é o bom ou o mau pretendente? “A distinção se desloca entre duas espécies de imagens. As cópias, (...) pretendentes bem fundados, garantidos pela semelhança; os simulacros são como os falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, um desvio essenciais” (id., p.262). A (falsa) semelhança de Bento “não deve ser entendida como uma relação exterior; ela vai menos de uma coisa a outra do que de uma coisa a uma Idéia, uma vez que é a Idéia que compreende as relações e proporções constitutivas da essência interna” (id., ibid.).
Interrompendo as verborrágicas citações e passando às referências, deus fez o homem à sua imagem -a cópia- e foi o pecado que nos afastou dela. Trocando em miúdos, foi o pecado que nos fez simulacros. Embora conservássemos a imagem, havíamos perdido a semelhança. É o que ocorre com Bento. Mantém a imagem do vigário de cristo, mas não possui mais a semelhança com o filho do homem. Todo simulacro é construído sobre a diferença. E é nessa diferença que está Bento. Bento, o simulacro-fantasma.
Bento, o fantasma.
A dissociação do corpo político e físico de Bento é o resultado desse jogo de representações. De um lado, é cristo. De outro, é homem. Apesar de que nem mesmo cristo escapou completamente ileso dessa dicotomia. Ernst Kantorowicz joga (platonicamente?) uma luz no assunto: “após o advento de cristo na carne, e após sua ascensão e exaltação como Rei da Glória, a realeza terrestre passaria constantemente por uma transformação e a receber sua função própria na economia da salvação. Os reis da Nova Aliança não seriam mais os “prefiguradores” de cristo, mas antes “figuras”, imitadores de cristo. (...) Cristo era Rei e Christus por sua própria natureza, ao passo que seu representante na terra era rei e christus somente pela graça” (in, Os dois corpos do rei, p. 51).
Claro que sempre há argumentos contra aquilo que se diz. No meu caso não é diferente. Está na bíblia: “daí a césar o que é de césar”, quando cristo dá ao imperador Tibério o dinheiro do tributo. É, mais uma vez, Kantorowicz que tem a palavra: “Tibério enquanto homem é iníquo; mas é divino como César, é divino como encarnação do Poder, é deus e, ao mesmo tempo, em relação a jesus, dominus. E a personalidade dual de Tibério torna-se tanto mais envolvida -e quase irremediavelmente-, quanto essa gemina persona, jesus cristo, o unigenitus, segundo sua deidade, e o primogenitus, segundo sua humanidade” (id, p.55).
O que se quer dizer, grosso modo, é que, já que está lá, tudo bem, ele é deus na terra mesmo e nada se pode fazer. Afinal, Ratzinger foi eleito por um conclave idôneo de cardeais. Porém, volto a Kantoriwicz, no parágrafo imediatamente seguinte à citação anterior: “desse confronto de suas personalidades duais, portanto, resulta o mais estranho quiasma imaginável. É como se a potestas de Tibério qua César fosse “aureolada”, ao passo que cristo, em sua servidão humana permanecesse sem auréola. Ao mesmo tempo, contudo, o iníquo Tibério, em seu corpo natural individual, não tem auréola, ao passo que deus encarnado e individuado, ainda que um deus absconditus, é aureolado até como homem” (id, ibid.).
Ratzinger, como divindade terrena está acima do bem e do mal, mas como homem que é, está sujeito à aprovação ou desaprovação e deve (deveria) responder por seus atos.
No entanto, aguardamos ainda o simulacro profetizado por Deleuze, aquele que irá subverter tanto o modelo quanto a cópia, aquele “sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual”. Talvez, quando sairmos da “dupla exigência do Mesmo e do Semelhante” possamos ver o que há por trás de eleições de presidentes, papas e afins. Talvez, aí sim, na subversão definitiva das profundidades, na completa corrupção do modelo possamos ver o que há por trás da imagem, o que há além dos dois corpos do rei. Até lá, resta-nos duvidar desses simulacros-fantasmas que habitam nosso imaginário. Até lá, resta-nos combater a infame imagem de Ratzinger e outros fantasmas que têm mais poder que veracidade.
ander_laine é um fabricante de imagens subversivo