29.10.04
Feriado de finados
Feriado de finados, o dia dos mortos. Sentia sempre um desconforto nesse dia. Não que tivesse medo deles. Na verdade, era uma garota bem senso-comum: tinha mais medo dos vivos. Mas sempre tinha lembranças ruins. Por isso, sempre -sempre mesmo- fugia da cidade na época, não importando o dia em que o feriado caísse. Viajava, sempre. De preferência com seu namorado, ótima companhia.
Feriado dos mortos. Sempre lembrava do dia de finados de alguns anos anteriores. Sempre, mesmo em outras épocas do ano. Não conseguia, de maneira nenhuma, esquecer daquele feriado de finados. E não era por falta de tentativa. Tudo que queria era esquecer. Só deus sabe como queria não mais lembrar. Apagar completamente da memória. Ao menos, pôr uma pedra sobre o assunto. Mas não, não havia o que a fizesse esquecer.
Lembrava-se com riqueza de detalhes tudo que aocntecera. Poucos anos antes; quando ainda era apenas uma adolescente recém-desvirginada, iludida pelo amor eterno. Inocente, apesar de impura. Ainda não era o que se tornaria. Mas, também, só se tornou o que é por passar pelo que passou. Claro que é óbvio dizer isso, mas às vezes o óbvio tem de ser dito (tem gente que não atina de primeira...).
Todo seu sofrimento era revivido com maior intensidade na época dos finados. Toda aquela dor, insuportável, aquela sensação de vazio, de perda irreparável. Tudo voltava, num turbilhão frenético de dor & ódio.
Era terrível. Ironicamente, morava ao lado de um cemitério. Um cemitério pequeno, é verdade, mas uma necrópole. Pequeno, mórbido, sombrio e convidativo. Não que fosse gótica -aliás, detestava-os, achava todos uns manés, fazendo tipinho, um saco! Na verdade, achava mesmo os góticos, os hard-cores skatistas e os hippies os tipinhos mais chatos do micro-mundo roqueiro-, mas apreciava bastante um passeio no cemitério. Afinal, um cemitério é, inegavelmente, um lugar calmo e silencioso. Irritante, talvez; mas calmo. Era justamente desse ambiente que precisava com freqüência. Um local calmo onde se possa reverenciar os mortos.
Era onde gostava de ir para se esquecer da tragédia de sua vida. Era onde ia pra se sentir bem. Pra se sentir viva. Adorava se masturbar lá. Era onde gozava de maneiras impensáveis em qualquer outro lugar. Mas, na única oportunidade que teve de transar de fato em um, foi broxante. Ela não gozou, nem o cara e eles pegaram uma gripe terrível de ficarem nus ao relento em cima de frias chapas de mármore.
Mas hoje, tudo mudaria. Sentia que essa viagem seria um divisor de águas em sua melancolia infinda. Sentia que, finalmente, voltaria a ver cores nas coisas. Cheiros, sabores, vida! Tudo voltaria a ela com essa viagem.
Quando entrou em casa e viu seu namorado tendo uma overdose, todo aquele encantamento se dissipou. Tudo voltara. Não se preocupou, nem se precipitou em ajudá-lo. Apenas, len-ta-men-te, o despiu e aguardou sua morte. Quando o sopro de vida se esvaiu de seu peito, transou loucamente. Descobrira o que a fazia gozar tao profundamente no cemitério.
Foi o melhor feriado de sua vida. Quando passou o dia dos mortos, telefonou à polícia e deu-lhes o endereço. Eles agiram rapidamente. Em quinze minutos chegaram à casa. Mas só encontraram dois corpos. Nem traços de quem pudesse ter lhes telefonado.
Nenhum dos oficiais reparou, mas o sorriso da garota era típico de quem morre gozando.