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20.10.04

Diálogo 


... não me venha com essa de “retiro espiritual”! Você é um escritor famoso, cara. Já tá assim de gente esperando teu próximo livro. Inclusive os críticos. Sabe quem a gente vai chamar pra fazer a resenha?

Não é nada disso. Você não entendeu uma palavra do que eu disse. Eu não vou pra nenhum “retiro espiritual”. Eu só não quero escrever o livro. Não esse livro. Se você realmente quiser lançar o que eu quero -e vou- escrever, vai ter que ser sob as minhas condições.

E quais seriam as suas condições, primadonna?

Eu quero o meu tempo, nada de prazos, planos de divulgação, nada. Eu quero apenas o tratamento standard da editora, certo? Melhor, quero ser tratado com a honra e a opulência de um escritor iniciante.

Parece razoável, mas você sabe que os críticos vão achar que é estrelismo.

Pára de pensar nos críticos, presta atenção no que eu tou falando. Você não vai mandar meu livro pros críticos com toda essa pompa a que nós dois estamos acostumados. Você vai dar o destaque que deu a, por exemplo, este livro (ergue um livro de sua editora, resenhado por nenhum jornal, revista ou similar), que achei numa livraria. Não estava nem na prateleira de lançamentos.

Ora, mas é porque esse autor é um lixo, um imbecil. Não sei porque se decidiu lançá-lo.

De qualquer maneira, eu quero esse tipo de tratamento com meu livro. E com tiragens baixas. Sempre.

Acho isso suicídio mercadológico, mas pode ser feito. Cara, você não tá pensando em termos de vendas. Todo mundo tá louco pra ler seus livros, rapaz.

Concordo, mas não quero dessa maneira.

Tudo bem, mas...

O quê?

Nada, cara, esquece.

Pode falar. Nós somos amigos, lembra?

Por que você tá fazendo isso? Você é genial ou genioso, cara?

Não é nada disso. Eu só acho que o tratamento que a “arte” tem recebido é... não sei bem que palavra usar. Talvez “indigno”; mas não quero soar arrogante com isso.

Eu não consigo entender. Um resgate das belas-artes, é isso?

Não, cara, eu não sei explicar muito bem. É estranho. Perceba o seu discurso: “tá cheio de gente esperando teu próximo livro”. Pois é isso que me incomoda. Quer dizer, assim que meu livro é lançado, já é best-seller. Por que isso? Será que tudo que eu escrever vai ser genial? Eu pessoalmente duvido que nada será, mas não vem ao caso. Será que eu sou tão bom assim a ponto de uma multidão ficar ávida por meus livros?

Claro que é!

Eu ignoro esse tipo de comentário.

Espera um pouco. Eu até entendo isso, eu quase concordo com você. Mas, por favor, entenda que sou um empresário. Eu também acho essa divulgação -propagandeação- ostensiva um crime, mas você é, de fato, um bom escritor e tudo o mais... seus livros, invariavelmente, serão boas vendas. E é inútil você querer mudar isso a essa altura da sua vida. Você não é mais nenhum virgem no ramo...

Sim, eu sei. Só queria, justamente, usar essa autonomia que você, meu velho, me outorga para evitar esse tipo de tratamento.

Tudo bem, cara, pode ser feito do seu jeito. Você sabe que eu faço questão de publicar seu trabalho. Mas tem uma coisa ainda que eu não entendi. Como é esse “retiro espiritual”?

Não é um retiro espiritual. É uma viagem que eu quero fazer. Uma viagem minha. No sentido de pirar, entende? Eu parei de acreditar nas coisas que fazia.

Como é?

Eu parei de acreditar no que fazia. No meu método, no meu trabalho, nas minhas pesquisas, tudo. As coisas perderam o por quê. Eu preferi desistir do que fazia e começar a fazer tudo outra vez. Diferente, agora.

Eu não tou entendendo mais nada. Você quer outra cerveja? Acho que tem umas no freezer. Eu vou pegar pra mim.

Não... não... eu não quero mais fazer assim. Tudo é muito classificado, tudo é muito mecânico...

O que você disse? Eu tava lá dentro, não te ouvi. Toma, trouxe uma loira pra você.

Puxa, obrigado. Eu simplesmente não acredito mais que meu trabalho tenha de corresponder a qualquer coisa. Eu não consigo mais aceitar o fato de que exista um pensamento que preceda aquilo que crio. Eu quero simplesmente criar. Deixar a minha mão livre para expressar aquilo que minha mente imagina.

Ora, que bobagem. Você é um escritor. Você vive de palavras, você pensa por meio delas, você imagina por meio delas. Elas estão por todo o seu imaginário. Você articula toda sua criação em palavras, todo seu discurso, seu raciocínio é, exatamente, expresso por palavras.

Não! Eu posso simplesmente pensar imagens lindas, sons... sons... sons sem adjetivos, cores, aromas, sabores e até sensações. E só depois, verbalizá-los. Só então começa a criação. Mas não posso me sujeitar a seguir uma filosofia, sim, já estabelecida. Não posso me furtar a aceitar todo um compêndio de regras que estabelecem normas de como e, principalmente, sobre o quê escrever. Quero deixar meu gesto livre para criar. Paul Valéry diz que “Fazer é o próprio da mão”.

Sim, eu sei. Sou um editor, supõe-se que leio livros. Primeiro volume de Oeuvres, “Discours aux chirurgiens”, certo? Então agora você lê Valéry e provavelmente acredita que o importante não é a obra, mas sua formação. Todas as transformações que a precedem para que algo de outra ordem se produza.

Exatamente. O que pretendo...

O que pretende, então, é criar uma obra de arte? Você sabe tão bem quanto eu que a obra de arte, como nós a conhecemos, morreu. Eu quis dizer, na verdade, como nós a conhecíamos. Meu velho, vivemos na era do prazer. É a lei do tesão que manda. Não vamos nos esquecer do velho Marx. Tudo é coisificado, é o fetiche da mercadoria. Ninguém mais se preocupa tanto se você é ou não um bom escritor. Eles consomem você! Seu produto é você.

Você tá simplificando demais as coisas. Não tava falando de um aspecto especificamente comercial.

Tudo bem. É de um aspecto mais intelectualizado, talvez?

Talvez... talvez queira apenas criticar todas as teorias. Deixa eu me explicar melhor. Não posso me permitir aceitar toda essa filosofia -eu vou chamar assim, se vira pra entender, editor- que está cristalizada, tudo isso que se faz, da maneira que se faz.

Você me parece um tanto conservador. Você quer o quê, afinal? Quer que o público volte a um estado de contemplação, de veneração, quase? Se liga, cara, isso não existe mais. Você quer escrever pra você mesmo, é isso? Ou, ainda, você vai querer escrever pra mim!? Ou pra sua namorada? Oquei, eu sei que você deve fazer isso mesmo, mas, pelo bem dela, não publica isso, não. Cara, existe uma coisa chamada mercado. Ela não é a coisa mais legal, boazinha ou justa de que se tem notícia, mas todos nós estamos inseridos e sujeitos a ele...

Eu sei disso! Eu sei do que você tá falando, mas eu tou falando de outra coisa! Eu não quero escrever pra ninguém! Nem pra mim, nem pra você, nem pra porra do mercado! Eu quero criar. A arte não tem de achar utilidade.

Você tá pensando na obra de arte como um objeto de contemplação... pois eu digo que a obra de arte é um objeto de uso. Não um objeto útil, em? Apenas um objeto que se usa como se usa uma ferramenta. Toda obra de arte tem seu uso. Ou você não considera arquitetura uma forma de arte? Pois ela também tem de ter sua funcionalidade...

Sim, mas não é...

Ora, não existe essa história de arte desvinculada de referências. Seus sentidos e suas percepções não são mais tão passivos, você educou todos seus sentidos a funcionar de uma maneira muito mais integrada...

Não é isso que eu tou falando!!! Eu só quero dizer que a arte não pode suceder a filosofia!!! A arte tem de anteceder o pensamento! A criação deve ser livre!!! Eu vou te matar!!!!

Calma, senhor, o senhor teve outra crise de esquizofrenia. Logo o senhor vai melhorar. Tente se acalmar e controlar essa agressividade. Tome este comprimido...

Eu não vou tomar comprimido porra nenhuma! Você sabe com quem você tá falando, seu insolente? Eu sou Charlie Manson. Quer dizer, eu sou Paul Valéry! É isso, eu sou Paul Valéry, ouviu bem?

Certo, certo...

O enfermeiro leva o velho para seu quarto. Ele é o interno mais velho do sanatório.


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