1.7.04
Parafusos espanados
LIVRO DE HENRY JAMES EXPÕE LOUCURA DO LEITOR
Prepare-se: feche as cortinas, deixe apenas uma fraca luz no local em que estiver, ajeite-se confortavelmente e tire as crianças do quarto. Ou melhor, traga as crianças para o quarto. E mantenha-as sob vigília intensa, não se sabe que mal rege suas atitudes.
Fica claro desde o início de A outra volta do parafuso (Ed. Abril Cultural), de Henry James, que as crianças estão diretamente envolvidas com o ter-ror. Mas não de que maneira esse envolvimento se dá. E esse é seu maior trunfo. E sua maior fonte de pânico.
um susto por dia mantém a alegria
Publicado em capítulos na revista estadunidense Collier’s Weekly entre janeiro e abril de 1898, a novela é fruto da incursão do autor no terreno do realismo fantástico. A aterrorizante história da tutora que luta contra a influência sobrenatural sobre seus dois encantadores pupilos também foi publicada em livro no mesmo ano, simultaneamente em Londres e Nova York.
Fantasmas. O livro trata de fantasmas. Conhecidos dos personagens. Mas não como aqueles de desenhos animados ou de filmes B de terror: assombrações que nos perseguem e nos assustam. Aqui, perseguem os outros. Nos assustam, mas não os conseguimos evitar. A anônima tutora também não consegue.
Escrita no auge do realismo, a história nos coloca frente a seu oposto: o irreal e inverossímil. Ou, como se convencionou chamar, o realismo fan-tástico. E talvez o próprio autor queira reiterar este rótulo, ao declarar, no prefácio à edição de 1908, que esses fantasmas vêm de relatos “da vida re-al” que ele havia ouvido.
parafusos a menos?
A história é narrada pela tutora. Portanto, em nenhum momento se pode saber se o que ela fala é de fato o que ocorreu. Embora tenha na figura da Sra. Grose, a governanta da casa, sua confidente, ela apenas concorda com tudo o que a primeira propõe, não evidenciando jamais suas próprias im-pressões e nem mesmo contestando a amiga.
Nas primeiras décadas após a publicação de A outra volta do parafuso, a existência e aparição dos fantasmas nunca foi questionada. Era uma histó-ria de terror e a tutora era apenas uma alma benevolente que lutava para livrar as apaixonantes crianças das garras da manifestação do mal. Porém, a partir dos anos 1920, algumas análises da novela começaram a pôr em xeque a sanidade da vigilante heroína.
Em um ensaio de 1934, fortemente influenciado pelas teorias de Freud, Edmund Wilson sugeriu que a tutora, por ser reprimida sexualmente, era neurótica e imaginava os fantasmas. O texto, “The ambiguity of Henry Ja-mes”, foi um marco para o estudo: após sua publicação, todos os ensaios tiveram de tomar partido com relação à loucura da moça ou à existência dos fantasmas.
Depois, grupos feministas consideraram esta hipótese de histeria infunda-da. De acordo com elas, se o narrador fosse um homem, sua sanidade ja-mais seria posta à prova. O próprio James chegou a afirmar, no mesmo prefácio de 1908, que a história nada mais era que “um conto de fadas pu-ro e simples” e que nenhuma outra de suas histórias de fantasmas foram consideradas alucinações.
Atualmente, porém, as duas hipóteses foram, praticamente, descartadas e a ambigüidade do texto foi finalmente encarada e aceita. Afinal, em deter-minados momentos, o texto nos leva a crer nas aparições. Em outros, dei-xa claro que a moça não bate bem mesmo.
Mas é justamente essa a mestria de Henry James. Por não fechar o texto, por fazê-lo passar, necessariamente, pelos seus filtros é que se torna rico, múltiplo. Nas passagens inegavelmente apavorantes -por que, afinal, a menina cruza o lago?- e nos momentos insistentes quando pensamos que ela é completamente doida, nada está certo. Muito menos provado. E o au-ge dessa dualidade se dá no final do texto em que a “realidade” dos fatos se confronta com a “realidade” que nos é narrada. Como associá-las ou dis-tingui-las? Ou antes, como saber em qual acreditar? Bem, opte pelo seu conforto: por qual caminho você se aterrorizará menos? Eu optei pelo ou-tro.
Mas também é fato que a própria narradora mantém muito controle sobre a história. Embora acuada muitas vezes por seus interlocutores mirins, suas análises e deduções sempre acabam por se comprovar. Mesmo que na voz da apática Sra. Grose. Também é a Sra. Grose que, mais uma vez, nos oferece a outra face e escracha a loucura da moçoila; mesmo que no fim acabe por submeter-se a seus planos.
este corpo não te pertence!
Mas James também não nos permite certeza em nenhum momento. A ex-pectativa criada em torno dos motivos do terror de Bly sustenta-se ao lon-go de todo o texto. E não apenas se sustenta como nos escapa das mãos entre um capítulo e outro.
Sabemos que o menino Miles foi expulso da escola por algo intolerável que fez. Mas o que ele fez? Simplesmente se evita dizer, é o incômodo que move o livro. A tutora tenta provar o tempo todo que o garoto agiu por influên-cia de um fantasma. A pequena Flora é controlada por outra aparição; é jovem demais para praticar maldades, apenas corre risco em suas mãos.Quando as coisas estão para se tornar evidentes, não se tornam. Ou ainda, quando a confissão parece certa, sua inocência ou perspicácia de-sarmam a tutora. Suas atitudes são ora angelicais, ora odiosas.
Por meio desse constante inverter de “vantagens”, Henry James cria um ambiente suficientemente tenso para o confronto entre a tutora e os fan-tasmas. Que terá as crianças -angelicais? infernais?- como prêmio. Prorro-gando o embate até o final, James continua nos aterrorizando e surpreen-dendo. Fechem as cortinas, diminuam as luzes e testem a sua sanidade mental.
ander_laine tem um parafuso a menos
vá atrás
-a outra volta do parafuso, de henry james (edição conjunta com lady
barberina)
-tradução: leônidas gontijo de carvalho e brenno silveira
-editora abril cultural
-287 páginas
-são paulo, 1980