1.7.04
Baratas em sua cama?
A transformação de Gregor Samsa num gigantesco e monstruoso inseto foi a metáfora escolhida por Kafka para representar a condição humana de sua época. Samsa, um caixeiro-viajante dedicado e honesto, acorda um dia transformado no tal inseto. Renegado pela família e aprisionado dentro de seu quarto, vai, pouco a pouco, perdendo sua humanidade. Embora lute contra isso até o final. O seu final, não o do livro.
A situação de Samsa é emblemática. A mensagem de Kafka também é clara: uma advertência a seus contemporâneos que a sujeição incondicional, acrítica e demasiada às normas vigentes pode alienar o homem de sua condição. Pode transformar-nos em insetos, em monstros repugnados por toda a sociedade -hipócrita.
Kafka nos mostra o tempo todo a degradação de Samsa como ser humano -descrevendo todos os momentos com sua frieza e sobriedade características. A degradação física já nos é escancarada na abertura do livro. Mas essa não é a mais chocante; muito menos a pior. O ápice é o apodrecimento de sua essência.
Samsa, embora não mais fisicamente humano, conserva traços de sua existência anterior -praticamente todos- enquanto se adapta à nova vida. Vai adaptando seus hábitos alimentares, suas novas habilidades e necessidades. Também vai se adaptando a ser um animal, um monstro. Vai se adaptando à exclusão que lhe é imposta pela família, que cada vez menos o reconhece como filho.
Funcionário impecável e filho dedicado, sempre se submeteu às necessidades alheias, deixando pouco espaço para suas próprias vontades. Sempre aceitou as coisas da maneira que lhe eram impostas. Submisso demais.
E sua submissão acaba sendo determinante para sua vida. Enquanto Samsa ainda se vê como humano, vive. A partir do momento que perde essa noção, perde também sua vida. Curiosamente, essa noção não é perdida por Samsa, mas seqüestrada dele.
Após sua transformação, é sua irmã que assume a responsabilidade de cuidar dele. Era ela quem limpava seu quarto e dava-lhe comida. Com o agravamento da situação insustentável que se havia instaurado, é justamente ela quem confisca de Samsa a humanidade. Ou antes, é ela quem explicita o fato de ele não ser mais humano.
E justamente no momento em que Samsa tentava aproximar-se dela, num ato desesperado e último de recuperação. Foi quando toda essa verdade veio à tona. Sua presença tornara-se insuportável, sua existência -a comprovação física dos males a que estivera exposto- eram demais para sua família. Ele havia se tornado intolerável. Seria melhor ser esquecido. Por exemplo, na primeira oportunidade que teve, o pai agrediu-lhe. Foi poupado pela irmã, responsável por sua expiação.
A tragédia de Gregor Samsa pôde -e pode- ser transportada para a realidade. Realismo fantástico? Não, nada disso, apenas uma crítica seca e mordaz às estruturas sociais a que a humanidade estava -e ainda está- sujeita. A segregação por classes sociais, a exploração dos pobres pelos ricos, o trabalho afastando o homem de seu meio, a opressão de uma sociedade burguesa decadente.
Kafka é contemporâneo, sim
Hoje em dia, embora muito tenha mudado desde que A metamorfose foi publicada, em 1915, a força da descrição de Kafka permanece. Ainda somos passíveis de nos tornarmos insetos, ainda cedemos demais a imposições opressoras e ainda nos dedicamos demais aos desejos alheios. De uma forma negativa. Ainda somos servis.
Se tivesse sido escrito neste século, muito provavelmente Kafka teria escrito a mesma história. Muito provavelmente com os mesmos detalhes, as mesmas idéias, o mesmo final e, infelizmente, a mesma verossimilhança.
Ainda vivemos sob as mesmas condições que Gregor Samsa; ainda sofremos do mesmo mal; ainda corremos o risco de, ao despertar de sonhos intranqüilos, encontrarmos nossos corpos metamorfoseados num gigantesco inseto.
ander_laine é um inseto gigante
vá atrás
-a metamorfose, de franz kafka
-tradução: erlon josé paschoal
-ilustrações: enio squeff
-editora círculo do livro
-87 páginas
-são paulo, 1989