17.5.04
A cidade é dos coletivos
De qualquer maneira, elas dependem de seus veículos. Seja para trabalhar, estudar, cuidar dos filhos, viajar ou vigiar. E eles também são, além de parceiros econômicos, muletas sociais. Ter um carro bonito, do ano e com motor mexido é melhor, e mais desejável, que ter um Uno velho, um Gol quadrado ou uma Parati com carburador.
Embora o tempo perdido no trânsito seja surreal, a velocidade e o conforto que os carros nos dão ainda superam os transportes públicos. Ter um carro não é um luxo, mas, muito mais, uma necessidade. Contornável, claro. Não ter um carro não mata ninguém nem infecciona. Mas contagia.
Ter um carro e, por qualquer motivo, deixar de tê-lo é um problema muito maior. Especialmente se o motivo fugir de sua decisão. Como ter seu carro guinchado, por exemplo. Às 11:45 do dia 18, saindo da aula, cami-nhei os três habituais quarteirões até o local onde estava meu carro, Bom-bão. O sol estava quase a pino e comentei com minha carona que me preo-cupava a estufa em que o velho Bombão tinha se tornado.
Na esquina, fui abordado pelo guarda da rua. Todo embaraçado, ele me explicou que o carro havia sido guinchado e que uma garota que me conhecia tinha ido me procurar, e ainda não achou. Enfim, o carro não estava lá, apenas um cavalete com um número de telefone. Ao menos um 0-800...
Sem reações, tinha ao menos uma companhia, que me pagaria o al-moço –tudo bem, McDonald’s – mais tarde. O que podia fazer era anotar o número e partir atrás da burocracia necessária. Para resgatar o carro, cla-ro. Busquei na calça as moedas necessárias para o ônibus e embarquei na aventura.
Depois de comer, fui ao escritório da mãe da carona e fiz as ligações necessárias. Más notícias: o seguro não cobre guincho, as taxas do guin-cho precisam ser pagas no Detran, no Ibirapuera, e o carro é pego no pátio do DSV, Barra Funda. Isso é fácil, um ônibus para cá e outro para lá e vol-to de carro para casa. E chego antes das cinco da tarde.
Tudo parecia resolvido, só surgiu um pequeno problema: como o carro não está registrado no meu nome, eu precisaria de uma autorização do proprietário para retirá-lo. E com firma reconhecida! Mas o proprietário do veículo mora em Joinville, Santa Catarina.
“Bom, amanhã vejo isso, vou para casa.” A pé, dessa vez. Andar pe-las ruas dá uma outra visão da cidade; mais que um ângulo, um ponto de vista. Andar traz aspectos que dirigir nega. As distâncias são percebidas em suas reais dimensões, os faróis e motoristas deixam de ser o foco, ape-nas configuram ruídos de fundo e podemos finalmente dar atenção às coi-sas que merecem ser atentadas, além dos carros nos cruzamentos: casas, árvores, até aquele decote.
No caminho de casa, em uma farmácia havia uma estante de publi-cidade e os dizeres “Produtos de higiene bucal”. Mas apenas camisinhas penduradas. Será que é algum tipo de mensagem criptografada? Um bar-beiro inteiro verde, uma casa de muro rosa e paredes amarelas e verme-lhas, uma garagem que se tornou loja de luzes de Natal...
Mas o pior de não ter carro é ter de ir trabalhar no dia seguinte, sa-bendo que é dia de trabalhar de carro, o que quer que isso queira dizer. Na verdade, minha chefe já tinha me ligado antes do almoço, me pedindo para trocar o dia de trabalho. E imediatamente recebeu as más notícias.
Mas no dia seguinte, não tinha jeito: teria de “trabalhar com carro” sem carro. Entregas seriam feitas à base de metrô, ônibus e trem. Primeira parada: Folha de S. Paulo. A secretária já tinha me informado que o ôni-bus Princesa Isabel passa em frente ao Bradesco da av. Cidade Jardim. Ótimo, só que, além do Bradesco, há um BCN, propriedade do Bradesco e usa a mesma logomarca.
Obviamente, ônibus errado... eu só perceberia isso depois de cruzar a ponte e o rio Pinheiros. Puxei, desesperadamente, a cordinha para des-cer, mas o ponto seguinte era bem mais longe. A noção de longe do moto-rista deve ser diferente, porque não me deixou no ponto certo, mas uns 500 metros depois. Incrível como motoristas de ônibus parecem viver num universo paralelo: dirigem aqueles monstros como se fossem pequenos fusquinhas.
Pensei que talvez fosse melhor, em vez de rumar pra o Centro, tomar o trem e ir até onde seria o meu segundo destino, o Jaguaré. Cruzo nova-mente a ponte, agora andando, e entro na estação Cidade Jardim. Trem sentido Osasco, até a estação Jaguaré. Muito bom, com ar-condicionado e som ambiente, embora o som deixasse a desejar.
Na estação, uma garotinha de uns 14 anos sentou-se ao meu lado. Ela estava com uma mulher mais velha, talvez sua tia, e falava – só ela fa-lava – sobre o que havia acontecido com os judeus no Holocausto, e como Getúlio Vargas havia lidado com o assunto. Primeiro ela não se lembrava do nome “daqueles matadouros do Hitler”, campos de concentração? – ar-risquei. Ela sorriu e continuou seu monólogo. Mas eu intervim de novo, dando aspectos um pouco mais aprofundados sobre o governo Vargas e o nazismo. Nada que os textos lidos para a prova da semana anterior não tenham resolvido.
Desci no destino certo agora, mas tive de cruzar outra ponte. Agora a do Jaguaré. Fui até meu destino e dei com a cara na porta. Quem eu pro-curava não poderia me atender porque estava em reunião e eu não tinha hora marcada. Tudo bem, “eu deixo com seu secretário”. Cruzo a mesma ponte e entro de novo na estação, agora com destino à ponte Orca para pegar o metrô na Vila Madalena e ir até a praça da República, onde pode-ria até comprar um daqueles discos dos vendedores ambulantes. Quer di-zer, onde faria a última entrega do dia. Eles têm coisas boas lá, como Ge-raldo Vandré, Chico Buarque. Até já comprei, pela pechincha de R$ 4,00, um disco do Arrigo Barnabé.
Isso foi numa rua perdida de Higienópolis. A rua nem é tão perdida assim, eu é que sou. Mas de qualquer forma, guardei o cartão da banca onde comprei esse disco porque tenho a impressão de que há outras coisas boas lá, é só uma questão de procurar.
Cheguei ao meu segundo destino, a Folha. Dei de novo com a cara na porta, a pessoa que eu ia ver estava indo para uma entrevista e não po-deria me atender. Tudo bem, deixo com a recepcionista. “Da procsima bez tem que marcar hora,” ela me disse com um sotaque latino. É, fazer o quê, fica para outra hora. Já que, apesar de estar sem carro resolvi tudo muito rápido, muito mais rápido do que se eu estivesse, de fato com o carro, en-trei no último bar antes do metrô e pedi uma cerveja. Bem gelada. Apesar de tudo, não me sinto triste, fiz tudo que precisava, em menos tempo e com a recompensa de uma cerveja. Mas ainda tenho que pagar os R$ 329,65 referentes ao guincho e R$ 16,22 por dia em que o Bombão fica no pátio do DSV.