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26.4.04

Surto 


Tudo ia bem, até que ele surtou. Não foi um surto qualquer, foi um daqueles acessos de fúria que você passa a vida inteira tentando evitar que aconteçam e, de repente, eles acontecem...

Sei lá, sabe quando o seu time perde? Um jogo besta, contra um time fraco e claramente desesperado? Aí, o goleiro do seu time, vírgula, o melhor goleiro do país, faz uma merda HOMÉRICA e literalmente dá um gol pros caras e tudo vai por água abaixo? E você, como bom fanático, fica puto e quer rasgar a camiseta do clube, xingar todo mundo e não se cansa de perguntar o que aquele zagueiro BURRO tá fazendo no time...

Então, foi mais ou menos isso. Só que ele surtou de verdade. E, sempre que ele surtava... peraí! Esse foi o primeiro surto FODIDO que teve, mas já tinha tido surtinhos antes. Afinal, normal ele nunca foi.

Retomando: sempre que ele surtava, dava uns gritinhos, uns xiliquinhos e quebrava três ou quatro coisas... tudo na mais perfeita paz de deus. Dessa vez, não. Foi feio... as pessoas ficaram assustadas. De uma maneira que eu vou te contar...

Será que eu conto? Acho que não... Ah, tá bom, vai, eu vou contar... mas antes, uma pausa para os nossos comerciais...

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Dessa vez, quando surtou, não quebrou nada. Nem gritou. Nem xingou. Nem deu xiliques. Nem nada. Aliás, nada mesmo. Nada. Ele não emitiu sequer um som, um gemido, grunhido ou soluço que fosse... NADA.

Ele não sabia ao certo o que motivara aquele surto tão grande. Com certeza não o futebol. Nem a falta de sexo, nem a falta de grana, nem a falta de nada. Só talvez a falta de CALMA. Mas isso era um problema dele. Evidente que sim, ele havia surtado. De qualquer maneira, era um surto sem precedentes.

Apenas silenciou. Calou-se e recolheu-se. Interna e externamente. Recolheu-se a seu quarto e lá ficou, por horas, sentado calado. Na cama, de costas pra porta, que até ficou aberta, mas ninguém teve coragem de entrar. Talvez esperassem por um de seus surtos agressivos. Se ele estivesse falando, talvez contasse a todos que daquela vez seria diferente, não faria nada violente. Que pudessem ficar tranqüilos. Mas estava quieto. CALADO.

E ficou lá, por horas, muitas horas, DIVERSAS, apenas sentado. Não se movia. Mal parecia que respirava. Talvez estivesse tentando parar, mas sabia que era impossível alguém se sufocar. ao menos não era um idiota.

Toda aquela semana havia sido uma MERDA. Aliás, todo aquele mês. Pensando bem, todo o ANO foi um ÂNUS. Fato que todos seus ANOS foram, obviamente, ÂNUS. Sua vida havia sido uma BOSTA completa.

Como ele nunca gostou dele mesmo, não podia -nem poderia- explicar. Mas nunca gostou de muuitas coisas, mesmo. De pêlos, de esportes, de música, de nada. Gostava de olhar. Mas não gostava de ver. Não sabia bem porquê... Mas era assim que era e assim as coisas eram, também.

Horas depois, levantou-se. Fez menção de sair do quarto, caminhou até a porta. pensou em fechá-la, mas mudou de idéia e voltou a sentar-se na cama. Ficou mais algumas horas.

Talvez pouco menos de um dia inteiro, estático. Extático, talvez? Provavelmente não. Queria, do fundo de seu coração, sentir-se como buda -Siddharta?- que passou anos meditando até chegar à iluminação. Mas sabia que não esperava nenhuma iluminação. E sabia também que jamais teria essa -nem nenhuma- "ILUMINAÇÃO". Estava fadado às trevas. Mas tudo bem, gostava do escuro.

Levantou-se, caminhou até o banheiro, queria ver se ainda era capaz de sentir. Qualquer coisa, que fosse. Nem que fosse DOR.

Começou pelo dedinho da mão direita. Era canhoto, foda-se a mão direita. O começo foi fácil, a carne era mole, macia. TENRA. A hora em que chegou ao osso, as coisas começaram a se complicar um pouco. Mas só um pouco. Era só forçar um pouco mais a cartilagem, sabia disso, havia feito diversas vezes com pés de galinha. Só se esqueceu que, cozida, a cartilagem amolece bastante.

NENHUMA dor. É, ele não sentia mais nada, mesmo. Depois, os outros foram mais fáceis, pegou a manha das cartilagens, era só fazer uma forcinha maior, forçando com o corpo, apoiando o ombro sobre a faca. O único problema que via, era que a faca perdia o fio com muita facilidade e, conforme ia perdendo os dedos, ficava mais difícil segurar o afiador. Por sorte, havia outras facas na casa.

Outra coisa difícil era evitar que as pessoas entrassem no banheiro. Mas quando se lembrou que poderia ameaçá-las com a FACA, as coisas ficaram mais fáceis. Embora soubesse que não faria nada de agressivo, NINGUÉM MAIS sabia. O que o deixava bem tranqüilo.

Ahhhh, os pés. Mais dez dedos. Lembrava-se que se chamam artelhos, mas que se dane, logo seriam história. Rápido de mais, eram todos pequenos. Claro que deixou os dedões por último. O desafio final? Claro que não...

Dedos, artelhos, dedões... nada, não sentia nada. Só faltava uma coisa mais. Seu PAU! Precisava de uma ereção, pra fazer com que fosse mais sofrido e com que o SANGUE jorrasse com mais força. Internamente, sempre quis saber a que distância o sangeu espirraria se um pênis ereto fosse decepado.

Pegou a melhor faca da casa e... bem, ele ainda precisava de uma ereção. Pensou em sua irmã e foi tudo muito rápido. Infelizmente, esqueceu-se de trocar de ambiente e, quando o sangue JORROU, ele não pôde precisar a distância. Foda-se, que diferença faria agora?

Lembrou-se da serra tico-tico que havia na garagem,mas já havia perdido sangue demais para andar até lá. Embora não sentisse DOR, sentia que começava a perder os sentidos. Sentido ele nunca teve, mesmo. Portanto, FODA-SE!!!

Quando acordou no hospital, todos o olhavam com olhar de PENA, de DÓ. Odiou-os todos e fechou os olhos, querendo, FINALMENTE, morrer.

Mas não morreu. E, por anos, seguiu naquele SILÊNCIO e sentimento de INCOMPLETUDE.

Mas que se foda, pensava, nada importava, nem o que sentia. Afinal, sabia que já não sentia nada. Talvez nunca tivesse sntido, mas isso era uma reflexão que preferia evitar.

sACal
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