26.3.04
Vinte minutos
18:40
Ônibus cheio, trânsito pesado; congestionamento, a bem da verdade. Tudo parado. Av. Faria Lima, ali no Itaim, perto daquelas obras que mais parecem trincheiras de guerra: os buracos que estão sendo feitos para as fundações do túnel, ao menos por enquanto, são tão estreitos e fundos que só podem ser trincheiras.
Tratores indo e vindo. Sempre de ré, ao que parece. Com suas lentas rodas, e cheias caçambas, vindo de ré. Em sua direção.
-ESPERA AÍ!-
Deixa eu dizer que, se fosse um filme, agora entrariam os créditos iniciais e a história começa antes de onde parou. Mas não é flashback, é uma NARRATIVA NÃO-LINEAR (tem que explicar porque eu acho que não vou me fazer claro, então deixo explícito que é fora de ordem). São três pessoas no ônibus. Elas são amigas, mas já é hora de ir pra casa, e talvez o dia tenha sido estressante o suficiente para que elas não queiram conversar. Talvez algo tenha ocorrido ao longo do dia que fez com que essas três pessoas, que até se parecem fisicamente, não queiram conversar.
Um pequeno cão corre atrás de um carro vermelho que se move lentamente. O cão ofega bravamente, mas segue. É um vira-lata, mas é guerreiro, não se cansa de seguir carros atrás de carros. Uma das pessoas do ônibus vê o cão e se enternece. O cão nem a nota, segue acima de tudo, nada o alcança.
O carro dobra uma esquina, despista o cão e some na paisagem cinza e laranja. Fumacenta. O ônibus pára em todos os pontos, aparentemente. O caminho é monótono e lento. Muito lento. Nada acontece.
18:50
As pessoas sabem que vão morrer. Elas têm a certeza disso. Mas nada mais pode ser feito. Tudo está decidido. A morte dista dez minutos deles, dez míseros minutos. E essa certeza parece transparecer em seus olhos. Eles se negam a falar. Mesmo uns com os outros. Eles não abrem a boca. Não dizem nada. A ninguém. Nem a si mesmos. Não pensam, não há essa possibilidade. Eles sabem o que acontecerá, irreversivelmente, em dez minutos.
14:30
As três pessoas saem de suas respectivas casas. Com uma estranha sensação de que algo estranho acontecerá. Algo que será, de alguma maneira, determinante. Talvez todas as coisas, no fundo, bem no fundo, sejam determinantes. Ainda que determinem coisas pequenas. Mas tamanho é relativo, mesmo...
15:40
O ponto de encontro era um bar, na Vila Madalena, perto do Sujinho, mas não importa... A cerveja era cara, mas eles tinham dinheiro o suficiente. Chegaram praticamente juntos, com meia hora de atraso. Sentaram-se num canto e conversaram. Beberam. Mas não riram. O tom solene da conversa manteve-se por todo o encontro.
18:56
Começam olhares. Apenas olhares. Suores... sem sorrisos. As mãos apertam-se nelas mesmas, os dedos crispam-se em desespero.
05:36
Sonhos estranhos permeiam o sono das três pessoas. Há visões do que se consideraria -por puro senso comum- deus e diabo. Vida e morte e todos esses clichês premonitórios que se habituou sonhar antes da morte propriamente dita. Quer dizer, efetivamente dita.
18:57
Cento e oitenta segundos, três minutos. A fúria. O medo. Somos,afinal, todos extremamente frágeis ante os desígnios da vida. Da morte, no caso. Não foi culpa daquele carro funerário que quase bateu no ônibus momentos antes. Não, não, eles já sabiam, não é uma certeza que começou dentro do ônibus. Não foi nenhuma epifania; mais uma revelação.
16:27
Almoçam junto, conversam banalidades. Riem, despreocupados. A certeza atroz que pairara sobre eles por todo o dia já se dissipou. Ou antes, omitiu-se.
18:58
Sabem que nada poderá adiantar ou atrasar seu destino. Só lhes resta aguardar, imaculados, os dois minutos que faltam...
15:59
O último gole de cerveja é servido. A solenidade do evento já se desfez. Quase por completo. Quase riem. Rirão, sabem disso. Em breve, talvez em outros ares, talvez... A leve embriaguez do álcool os afastou da certeza da morte. Quem sabe, se morressem bêbados, não sofressem tanto. Embora não estivessem sofrendo.
18:59
A qualquer momento tudo vai acabar. Aliás, não é a qualquer momento, é no momento exato que chegará em exatos sessenta segundos.
19:00
O ônibus pára no ponto. As portas se abrem, alguns passageiros descem, muitos sobem e as mãos das três pessoas se seguram fortemente. A do meio fecha os olhos e, entre lábios, sussurra um mantra hindu. A da esquerda apenas derrama uma lágrima. Mas é a da direita quem aperta o detonador que manda o ônibus pelos ares.
57 pessoas morreram, 29 ficaram feridas. Três dias depois, nova onda de atentados chocou a cidade, mais de 350 pessoas morreriam em apenas um fim-de-semana. A guerra civil durou dezoito meses, três presidentes foram eleitos e depostos em quinze meses, 4587 pessoas desapareceram e todos os milicianos rebeldes foram mortos pelas forças do Estado.
Depois, uma ditadura militar se instaurou, durou 16 anos e todos aqueles que se sacrificaram -em vão- pelo fim do regime ilegal foram cruelmente assassinados.
Anos depois, nos livros de escola, ensinava-se que a explosão do ônibus havia sido o estopim, que as três pessoas eram os piores criminosos de guerra do país. Mas ninguém comentou os motivos que os levaram a cometer esse crime. Nem eles mesmos.