19.3.04
Dear Deer
Era só o silêncio. Todos os barulhos tinham cessado. Todos, rigorosamente todos. Nem um pio. Nada. Zero. O famoso "PORRA nenhuma". Silêncio. E ele continuava repetindo -embora sem se ouvir- as mesmas palavras. Continuava, mesmo após tanto tempo -apesar de a percepção do tempo ser relativa- a repetir aquelas palavras. De alguma maneira faziam sentido, sim. Talvez não soubesse explicar, mas o fato de repeti-las, incessantemente, fazia com que se sentisse bem. Reconfortado,eventualmente.
Três anos antes, numa noite de Natal, ou no dia 24, talvez, as lembranças já não faziam muita diferença. Na verdade, ele nunca soube;de alguma forma bizarra, seu cérebro meio que apagou os eventos na forma como eles realmente aconteceram. Ele sabe de tudo que aconteceu, sabe que foi, de certa forma, o grande culpado e sabe que tudo aquilo era -havia sido- irreversível. Mas não sabe como aconteceu.
(Por sorte, dispomos de um narrador onisciente -digam "Amém", caralho! Olha o respeito...- que também testemunhou tudo e pode nos narrar. Atenção, para a continuidade da narrativa é necessário um depósito no valor de R$1,99 na conta do narrador. Deposita aí, senão ele não conta a história...)
Claro que estava chovendo, senão não haveria história. E, como poderia começar uma história sem abusar dos clichês? Atenção, você não está lendo nenhum gênio da literatura. Atenção: NÃO SOU LUIZ RUFFATO... embora quisesse. Minhas histórias são clichês, sim, mas o que posso fazer?
Chovia, a estrada estava molhada, e os freios não estavam lá grande coisa. Mas ele estava dirigindo numa boa. Sabia do perigo que corria. Aliás, não corria. Ia a uma velocidade confortável e segura. Só que nunca imaginou que aquele cervo fosse atravessar a rua. Aliás, por que o cervo atravessou a rua? Envie sua resposta para este imeio que as respostas mais criativas vão ganhar... nada!!!
Atropelou o pobre cervo. E deu sorte. Quando as quatro pernas do viadinho quebraram e seu corpo invadiu o habitáculo do carro, conseguiu se abaixar um pouco, apenas o suficiente para não morrer. Mas ela não. Não se sabe se não teve tempo, se não teve instinto ou se simplesmente quis morrer.
Calma, revelações pesadas. No meio da história, como quem não quer nada, talvez faça com que as afirmações percam sua força literária. Meu editor me disse que eu era leviano em algumas afirmações, que eu fazia com que elas perdessem a "força literária". De qualquer forma, retomarei a história de onde parei.
Ela já tinha uns desejos de morte havia algum tempo. Estava cansada da vida, do emprego, dos amigos. Até dele, que por anos a fio, havia sido a coisa mais importante em sua vida: foi ele que a salvou do naufrágio do iate em que ela perdeu toda sua família. Ela tinha apenas dezenove anos. E, desde então, devotou-se sempre a ele. Mas agora queria morrer. E planejava, até, sua morte.
Quando ela viu o cervo, fez questão de não se mover. Sabia que ele a acertaria em cheio. Evidentemente. E ele apenas... apenas?... ficou surdo. E tudo foi silêncio desde então. Na vida e na mente dele. Ah, no coração também, mas a narrativa ignora esse detalhe porque, se contasse do meu jeito, esse sentimento perderia sua força literária.