21.1.04
Já era de manhã e eu tava voltando sozinho pra casa. Quer dizer, de manhã mais ou menos... eram umas cinco e pouco. Só que ainda não tinha o busão que me leva pra casa. Então eu fui andando mesmo, fazer o quê? Tava na Paulista, ali perto da Brigadeiro, naquele farol demorado. Não sei se eu fico mais grilado, lá, pelos gambés que ficam naquela esquina ou de algum ladrão que possa aparecer. Acho que dos gambés, que tão sempre lá.
Enfim, quando eu cruzei a rua -tava um céu lindo, meio avermelhado, meio laranja, aquele cenário que só a poluição pode causar- eu vi, alguns metros na minha frente, uma mina que, de costas, parecia muito minha ex-namorada.
Eu tenho uma teoria (?) que diz que todos seus problemas afetivos são culpa de uma pessoa só. E você sabe quem é. Enfim, eu achei que fosse ela na Paulista, o meu problema.
Sei lá, é meio difícil pra mim me aproximar dela: mais do que estourar a calça, eu tenho medo de me envolver de novo e viver todo aquele pesadelo de novo. E o pior é que eu sei que ela se sente assim também. Talvez eu seja o problema dela...
Então eu nem corri nem chamei ela. Só fiquei olhando. Claro que eu apertei um pouco o passo pra ver mais de perto. Se não era ela, era muito parecida: mesma altura, mesmo cabelo, roupas bem no jeitão dela, andava igualzinho, mexendo os braços do jeito que só ela mexe. Até a bunda dela era parecida...
Mas tinha alguma coisa estranha. Não saberia dizer o quê. Talvez fosse o cheiro dela. Claro que não, o vento tava a nosso favor, o cheiro dela tava soprando pra frente... Aquilo tava ficando muito estranho então eu resolvi chamar e ver se era ela mesmo.
"Fulana! Fulana!" Abre parênteses: claro que esse não é o nome dela... você acha que eu ia queimar o filme dela dessa maneira? Fecha parênteses. Ela olhou. Era ela mesmo...
Oh-oh, e agora? Que que eu faço? Caralho, sempre que a gente se vê eu acabo agindo que nem um adolescente... puta cabacice. Calma, respira, relaxa e tenta não tremer. Tenta ficar calmo, agir naturalmente.
Interlúdio: o namorado -carioca- de uma amiga não gosta do Arrigo Barnabé porque ele é muito pauilstano. Sempre achei meio exagerado. Aí, ouvindo a música "Pô, amar é importante" eu entendi o que ele quis dizer...
Retomando: Até que eu me saí bem: conversinha besta, o famoso será que vai chover e tudo o mais. Os americanos chamam isso de small talk. A famosa conversinha... E a gente foi andando em direção ao Paraíso -com toda a simbologia que isso carrega. Mas ainda tinha uma coisa estranha.
Acho que era o jeito que ela falava. Ou melhor, as coisas que ela falava. Do jeito que ela tava falando, eu percebi que algo muito grave tinha acontecido. Mas não sabia se eu queria saber. Eu tenho medo porque ela também sempre quer se envolver, mas a gente junto não dá muito certo. Esse que é o grande problema. Quando a gente fica longe é foda, é melhor nem ver nem falar com ela. Quando a gente tá junto é pior... o relacionamento é impossível.
Sei lá, vai ver ela matou o namorado dela... uau, não ia me surpreender se ela fizesse isso. Não mesmo. O que eu acho mais estranho é o fato de ela não gostar muito do cara... e sempre me liga quando tem problemas com ele. Que bosta, não dá nem pra xavecar ela direito.
Mas não era isso porque logo depois o maluco ligou no celular dela e eles ficaram um tempo trocando idéia. Eu até pensei em me afastar, atravessar a rua, olhar uma vitrine ou, sei lá, sair fora mesmo, mas ela segurou meu braço. Forte demais, até. Tive que ficar, né? Fiquei, ouvindo a conversa dela. Porque a parte dele eu não conseguia ouvir.
Eu sempre fico pensando em povos antigos quando vejo alguém falar no telefone: é bizarro, a pessoa conversa sozinha: "Sim... não, a Claudinha falou pro Jonas, não a Lurdinha... a Bianca não vai... quem?... quem é essa?... ah, aquela sirigaita, biscateira... não, claro que eu não tenho ciúmes dela, é só ela ficar longe de você... de novo?... assim não dá... não, não dá mesmo, todo dia é a mesma coisa... nossa, você não sabe o que o Dênis me falou hoje..." e por aí vai.
Era uma conversa muito estranha, até porque só ouvia a metade e, convenhamos, não sei dos detalhes do relacionamento deles. Até por falta de opção. Não lembro bem o que ela tava falando, mas não importa, não era isso que estava estranho nela.
E desligou. E voltou a falar comigo. E começou a chorar. Muito. Mesmo. Foi aí que eu percebi o que estava estranho: ela tinha um corte gigante na altura do ventre. Feito por um punhal? Parecia um ritual de hara-kiri -atenção, hara-kiri é o suicídio ritual dos japoneses. Você pensou em daiquiri, que é um drink que leva rum, suco de limão e um barato que chama grenadine. Sei lá, odeio drinks... Ô, Queirós, me vê mais uma Serramalte e outro istainhéga...-: um corte profundo que começava no abdôme e subia até abaixo do peito direito. Mas ela nunca teve tendências suicidas e nem era japa... que bizarro.
Aí que, disfarçando a minha indelicada desatenção, eu reparei um popuquinho melhor e até arrisquei: "Nossa, que houve?..." Assim mesmo, como quem não quer nada. Ela só me olhou, parou de chorar, limpou as lágrimas na minha camiseta de breja e sorriu.
Abre parênteses: caralho, que sorriso lindo! Fecha parênteses.
No que ela sorriu, me beijou no rosto, na face direita porque ela estava pra dentro da calçada, e falou: "Nada."
E saiu voando. Assim, de repente... ascendeu ao céu e aí eu entendi o vermelho daquela manhã. Fiquei parado, meio embasbacado mesmo, olhando e vendo se não era sonho, alucinação -aquele ácido já tinha passado há um tempo, mas sabe como é flashback- ou efeito especial, pegadinha...
No lugar em que ela estava, ficou só um pedaço de pano: seda. Chique. E um bilhete com o meu nome escrito: "Foi melhor assim. Não tinha como ser de outro jeito. Não tinha mesmo... Nada ia fazer a gente ficar junto, nada. Só seja um bom menino que, quem sabe, a gente não se encontra aqui em cima..."
Como assim? Todos meus amigos vão pro inferno, você acha que eu vou perder essa balada? Você que seja má e trate de descer...
De qualquer forma, guardei o teco de seda e o bilhete no bolso e entrei num boteco pra tomar uma cerva gelada e pensar a respeito, enquanto o busão não chegava.
Enfim, quando eu cruzei a rua -tava um céu lindo, meio avermelhado, meio laranja, aquele cenário que só a poluição pode causar- eu vi, alguns metros na minha frente, uma mina que, de costas, parecia muito minha ex-namorada.
Eu tenho uma teoria (?) que diz que todos seus problemas afetivos são culpa de uma pessoa só. E você sabe quem é. Enfim, eu achei que fosse ela na Paulista, o meu problema.
Sei lá, é meio difícil pra mim me aproximar dela: mais do que estourar a calça, eu tenho medo de me envolver de novo e viver todo aquele pesadelo de novo. E o pior é que eu sei que ela se sente assim também. Talvez eu seja o problema dela...
Então eu nem corri nem chamei ela. Só fiquei olhando. Claro que eu apertei um pouco o passo pra ver mais de perto. Se não era ela, era muito parecida: mesma altura, mesmo cabelo, roupas bem no jeitão dela, andava igualzinho, mexendo os braços do jeito que só ela mexe. Até a bunda dela era parecida...
Mas tinha alguma coisa estranha. Não saberia dizer o quê. Talvez fosse o cheiro dela. Claro que não, o vento tava a nosso favor, o cheiro dela tava soprando pra frente... Aquilo tava ficando muito estranho então eu resolvi chamar e ver se era ela mesmo.
"Fulana! Fulana!" Abre parênteses: claro que esse não é o nome dela... você acha que eu ia queimar o filme dela dessa maneira? Fecha parênteses. Ela olhou. Era ela mesmo...
Oh-oh, e agora? Que que eu faço? Caralho, sempre que a gente se vê eu acabo agindo que nem um adolescente... puta cabacice. Calma, respira, relaxa e tenta não tremer. Tenta ficar calmo, agir naturalmente.
Interlúdio: o namorado -carioca- de uma amiga não gosta do Arrigo Barnabé porque ele é muito pauilstano. Sempre achei meio exagerado. Aí, ouvindo a música "Pô, amar é importante" eu entendi o que ele quis dizer...
Retomando: Até que eu me saí bem: conversinha besta, o famoso será que vai chover e tudo o mais. Os americanos chamam isso de small talk. A famosa conversinha... E a gente foi andando em direção ao Paraíso -com toda a simbologia que isso carrega. Mas ainda tinha uma coisa estranha.
Acho que era o jeito que ela falava. Ou melhor, as coisas que ela falava. Do jeito que ela tava falando, eu percebi que algo muito grave tinha acontecido. Mas não sabia se eu queria saber. Eu tenho medo porque ela também sempre quer se envolver, mas a gente junto não dá muito certo. Esse que é o grande problema. Quando a gente fica longe é foda, é melhor nem ver nem falar com ela. Quando a gente tá junto é pior... o relacionamento é impossível.
Sei lá, vai ver ela matou o namorado dela... uau, não ia me surpreender se ela fizesse isso. Não mesmo. O que eu acho mais estranho é o fato de ela não gostar muito do cara... e sempre me liga quando tem problemas com ele. Que bosta, não dá nem pra xavecar ela direito.
Mas não era isso porque logo depois o maluco ligou no celular dela e eles ficaram um tempo trocando idéia. Eu até pensei em me afastar, atravessar a rua, olhar uma vitrine ou, sei lá, sair fora mesmo, mas ela segurou meu braço. Forte demais, até. Tive que ficar, né? Fiquei, ouvindo a conversa dela. Porque a parte dele eu não conseguia ouvir.
Eu sempre fico pensando em povos antigos quando vejo alguém falar no telefone: é bizarro, a pessoa conversa sozinha: "Sim... não, a Claudinha falou pro Jonas, não a Lurdinha... a Bianca não vai... quem?... quem é essa?... ah, aquela sirigaita, biscateira... não, claro que eu não tenho ciúmes dela, é só ela ficar longe de você... de novo?... assim não dá... não, não dá mesmo, todo dia é a mesma coisa... nossa, você não sabe o que o Dênis me falou hoje..." e por aí vai.
Era uma conversa muito estranha, até porque só ouvia a metade e, convenhamos, não sei dos detalhes do relacionamento deles. Até por falta de opção. Não lembro bem o que ela tava falando, mas não importa, não era isso que estava estranho nela.
E desligou. E voltou a falar comigo. E começou a chorar. Muito. Mesmo. Foi aí que eu percebi o que estava estranho: ela tinha um corte gigante na altura do ventre. Feito por um punhal? Parecia um ritual de hara-kiri -atenção, hara-kiri é o suicídio ritual dos japoneses. Você pensou em daiquiri, que é um drink que leva rum, suco de limão e um barato que chama grenadine. Sei lá, odeio drinks... Ô, Queirós, me vê mais uma Serramalte e outro istainhéga...-: um corte profundo que começava no abdôme e subia até abaixo do peito direito. Mas ela nunca teve tendências suicidas e nem era japa... que bizarro.
Aí que, disfarçando a minha indelicada desatenção, eu reparei um popuquinho melhor e até arrisquei: "Nossa, que houve?..." Assim mesmo, como quem não quer nada. Ela só me olhou, parou de chorar, limpou as lágrimas na minha camiseta de breja e sorriu.
Abre parênteses: caralho, que sorriso lindo! Fecha parênteses.
No que ela sorriu, me beijou no rosto, na face direita porque ela estava pra dentro da calçada, e falou: "Nada."
E saiu voando. Assim, de repente... ascendeu ao céu e aí eu entendi o vermelho daquela manhã. Fiquei parado, meio embasbacado mesmo, olhando e vendo se não era sonho, alucinação -aquele ácido já tinha passado há um tempo, mas sabe como é flashback- ou efeito especial, pegadinha...
No lugar em que ela estava, ficou só um pedaço de pano: seda. Chique. E um bilhete com o meu nome escrito: "Foi melhor assim. Não tinha como ser de outro jeito. Não tinha mesmo... Nada ia fazer a gente ficar junto, nada. Só seja um bom menino que, quem sabe, a gente não se encontra aqui em cima..."
Como assim? Todos meus amigos vão pro inferno, você acha que eu vou perder essa balada? Você que seja má e trate de descer...
De qualquer forma, guardei o teco de seda e o bilhete no bolso e entrei num boteco pra tomar uma cerva gelada e pensar a respeito, enquanto o busão não chegava.